esc - teclado preparado
esc - teclado preparado — 2008
teclado de computador, parafusos e porcas borboletas
dimensão variada
teclado de computador, parafusos e porcas borboletas
dimensão variada
esc - teclado preparado — 2008
teclado de computador, parafusos e porcas borboletas
dimensão variada
teclado de computador, parafusos e porcas borboletas
dimensão variada
Teclado preparado
Por Felipe Lins*
Um teclado de computador cujas teclas dão lugar a parafusos com porcas borboletas. Trata-se de algo que um John Cage pós-pianista chamaria de “teclado preparado”. Intitulado “Esc – teclado preparado”, este poema-objeto de Cláudio Trindade transforma todas as teclas naquela a que o título se refere, virtualizando as letras que a compõem (bem como, por extensão, as demais) e concretizando seu sentido à medida que torna inoperante qualquer digitação pós-esc. E para compreender isso para o qual aparentemente falta intuição, nem é preciso ir muito longe, pois já sabemos, desde nossa própria experiência digital, que quando esc é tocada, um evento irreversível imediatamente advém: o teclado sai intransitivo, abandona sua função, decretando, tal como Beckett, o fim da partida, ou tão-somente sua própria partida, e passa, assim, a ostentar de maneira blanchotiana sua não-relação em relação àquele que até então com ele se relacionava (ou melhor, acreditava se relacionar). É o que ocorre com o poema-objeto em questão. Mas nesse caso específico, é como se o olhar do espectador – cujo olho, tomando o lugar do dedo, torna-se o responsável pelo toque –, no instante mesmo em que toca o teclado, tocasse inevitavelmente uma tecla esc originária, que nunca terá sido vista, dado que ela é a condição do próprio olhar. Aquela velha e boa sentença: não se vê o ver. Aliás, diga-se de passagem, Esc é muito parecido com Bartleby; tem-se a impressão de que ele está enunciando repetidamente: “eu preferiria não”.
O que mais intriga no teclado de Cláudio é o fato de que foi preciso suprimir suas letras para que ele deixasse de ser um objeto eventualmente construtor de poemas para se tornar – por meio de bizarros seres híbridos (porcas-borboletas) que não constam em nenhuma mitologia até então conhecida – um poema-objeto, sendo imediatamente reconhecido como tal, isto é, como um ser híbrido, materializando, afirmando na concretude aquilo que outrora só existia enquanto mera possibilidade: o devir-poema do teclado. Os parafusos envoltos em porcas borboletas se dispõem na superfície do teclado como versos, indicando um ritmo, um movimento que é, por sinal, paradoxal: sua mobilidade é aludida tão-somente pela mais fixa e apertada imobilidade.
Das teclas móveis aos parafusos e porcas que imobilizam: parece haver aí uma sabotagem ao jogo tecnológico, uma trapaça que impede, que cesura o funcionamento do sistema pós-industrial ou de consumo. A ironia (e o caráter contemporâneo deste gesto) é que o elemento sabotador, ao invés de figurar como o tradicional boicote às máquinas da indústria, é justamente um dos ícones da era industrial. Com isso, inverte-se a equação, fazendo do alvo de outrora a arma do agora. Simultaneamente, questiona-se a tese já há muito tempo difundida de que há uma clara passagem, no âmbito do capitalismo, do setor secundário (industrial) para o setor terciário (de consumo). É como se a operação realizada por Esc desvelasse no mundo pós-industrial a inextricabilidade da industrialização como fator inexorável para que possamos usufruir dos entes tecnológicos com que lidamos como se eles surgissem magicamente (com um simples toque na tecla), pois nos esquecemos das condições materiais (leia-se: o trabalho quase escravo de milhões de pessoas, sobretudo crianças, nas indústrias espalhadas pelo mundo) que permitem nosso gozo virtual globalizado. Nesse caso, o teclado preparado espanta: não se limitando a rememorar um passado, ele traz a memória de um agora já esquecido.
Botando as mãos pelos pés, podemos ler um outro poema-objeto de Cláudio, que leva o título “42”, como formando um díptico com “Esc”: trata-se de um par de chuteiras de futebol em cuja sola reaparece, no lugar dos cravos, algumas daquelas teclas suprimidas do teclado de computador. Talvez a presença das teclas na sola da chuteira represente o sonho daquela criança asiática que fabricou a própria chuteira: participar do mundo digital globalizado de que ela foi excluída.
* Felipe Lins (Top) é Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina, crítico de arte, psicanalista e poeta.