quem matou Herzog?



Diálogo aberto: quem matou Herzog? por LUCILA VILELA*
Quem matou Herzog? A pergunta estampada na cédula de um cruzeiro provocou desconforto na época da ditadura militar brasileira. A obra “Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Cédula”, do artista Cildo Meireles, transitava livremente no circuito monetário: mensagens contra o governo ditatorial e o autoritarismo eram carimbadas em bilhetes de dinheiro e devolvidas à circulação. A incômoda frase “Quem matou Herzog?” fazia uma referência explícita às causas não esclarecidas da morte do jornalista Vladimir Herzog, detido pelos órgãos de repressão política. A mensagem anônima e crítica nos anos 70 perturbava o controle de informação e deslocava o lugar da arte. No projeto, o artista dispunha de instruções para a reprodução do gesto e declarava: “a reprodução dessa peça é livre e aberta a toda e qualquer pessoa”.

No entanto, se nos anos 70 a cédula de um cruzeiro valia pouco ou quase nada, atualmente o trabalho de Cildo Meireles tem muito valor no mercado de arte. A postura dele é clara: “Nunca tive a intenção de comercializar esses bilhetes”[1]. Recentemente, quase 40 anos depois, o artista Cláudio Trindade, em um gesto irônico, seguiu as instruções de Cildo Meireles, reproduzindo e multiplicando as cédulas. O gesto fora de época, levanta hoje outras questões referentes à falsificação e ao mercado de arte. Uma jogada ousada que coloca o valor dessa obra em uma sinuca de bico.

Hoje, ainda, a nota de “um cruzeiro” valor assegurado no mercado de moedas antigas, valendo mais do que na época em que era moeda corrente. Porém quando Trindade carimba uma cédula que poderia estar na mão de um colecionador, ele anula seu valor. Por outro lado, no mercado de arte, o valor da obra é posto em xeque não só pela falsificação, mas também pela distribuição em grande quantidade de cédulas no circuito.

Foi nessa época ainda que Cláudio Trindade distribuiu as notas para a critica e teórica italiana Modesta Di Paola que tinha uma entrevista marcada com Cildo Meireles. Na ocasião, ela levou as notas e contou ao artista sobre a situação. Além disso, perguntou se poderia assiná-las. Cildo Meireles, em um rápido raciocínio, perguntou o nome do artista-falsificador e com segurança assinou: Cláudio Trindade.

Uma falsificação em cima da falsificação. Um gesto duplo em diálogo aberto. Partindo das mãos de Cildo a assinatura transforma as cédulas em um objeto único, “originalmente” falsificado, criando uma grande contradição. Assim existem apenas três cédulas assinadas que contam a história: uma se encontra com Cláudio Trindade, outra com Modesta Di Paola e outra com Cildo Meireles. Um ano depois, ainda, Cláudio Trindade fez uma visita ao artista para, segundo ele, “confessar o crime”.  O encontro entre Cildo Meireles e Cláudio Trindade  aconteceu em outubro de 2011, no Rio de Janeiro, e não passou de uma conversa harmônica em que viagens, paladares e futebol foram temas recorrentes. Quando, presenciando o encontro, pedi para Cildo assinar a nota que eu tinha em mãos, ele assinou um híbrido dos dois nomes.

Hoje, muitas dessas cédulas circulam no mercado de arte confundindo a autenticidade do que se tornou um produto. De fato, a cópia é idêntica ao original, considerando que os bilhetes de um cruzeiro são originais e o carimbo reproduz com perfeição a mensagem da época. Sendo assim não há distinção entre original e cópia. E, nesse caso, esta questão é irrelevante. A postura de Cildo Meireles confirma. Se o intuito da obra era criar um sistema de circulação e informação que não dependesse de nenhum tipo de controle centralizado, a comercialização no mercado de arte não teria sentido.

Cláudio Trindade, desta maneira, coloca seu gesto como obra de arte. O que vale não é o resultado final da obra, a cópia no caso, mas o diálogo com a obra de Cildo Meireles e a ironia em relação à transição do valor monetário. O gesto também aponta um fenômeno que acontece com muitos artistas dos anos 60/70 quando são absorvidos sem controle no circuito de arte, principalmente após a sua morte. A negação do conceito original da obra tem sido muitas vezes ignorada e adaptada de acordo com a conveniência de conservação principalmente considerando o valor financeiro que a peça adquire. Um exemplo clássico desse sintoma são os bichos de Lygia Clarck feitos propositalmente para serem manipulados e hoje são peças resguardadas, proibidas de serem tocadas em qualquer exposição da artista. Uma contradição e afronta ao conceito da obra em prol de um rendimento simulado pela necessidade de preservação do objeto de arte.

Assumindo a cópia, Trindade questiona o mercado de arte e confirma as intenções de Cildo Meireles. A cópia, o jogo e a ironia são questões recorrentes na produção de Cláudio Trindade. O artista trabalha com o que Nicolas Bourriaud chamou de pós-produção, realizando obras a partir de objetos já produzidos. A apropriação e o intercâmbio geram novas reflexões rearticulando formas e propondo desvios. A reprodução, a priori, fora de época, do projeto cédula, gera outra discussão não apenas política e de informação, mas na intenção de confundir o mercado de arte. Afinal, se alguém que possui as cédulas “falsas” queira vender em um leilão como um autêntico Cildo Meireles, facilmente será  creditado.

No filme “F for Fake” (1974),  de Orson Welles, a história dos falsificadores Elmyr de Hory e Clifford Irvind, levantam a discussão do documentário:  “A importante distinção a ser feita quando se fala sobre a qualidade genuína de um quadro não é muito se um quadro é verdadeiro ou falso. Mas sobre se é uma falsificação boa ou ruim”, diz um dos personagens do filme.  A discussão sobre a validade da falsificação surgiu principalmente no contexto das vanguardas artísticas do século XX, a originalidade de uma pintura estabelecia o valor de uma obra. No entanto vale lembrar que antes disso a cópia era uma atividade comum no meio artístico, Caravaggio, Bosch, Rembrandt, Dürer e muitos outros foram copiados e seguidos por seus discípulos.

A noção moderna de novidade começou a se desestabilizar com o aparecimento da fotografia. No importante ensaio de Walter Benjamin, “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, o filósofo discorre sobre o aparecimento de novas formas de arte que afetam diretamente a distinção entre original e cópia interferindo no fim da “aura”.  Também Wim Wenders, no filme “Notebook on Cities and Clothes” (1989) comenta: “com a pintura, tudo era mais simples. O original era original, e cada cópia era uma cópia – uma falsificação. Com a fotografia e depois o filme a coisa começou a complicar. O original era o negativo. Sem a impressão, não existia, ao contrário, cada cópia era um original. Agora, com o eletrônico e mais ainda com o digital, não há mais negativo nem positivo. A noção de original é obsoleta. Tudo é cópia.”

Com a popularização da internet, ainda, essa discussão se intensifica. Principalmente em relação aos direitos autorais que não deixa de ser uma luta pelo reconhecimento do original. A proibição da cópia se torna cada vez mais vulnerável e evidencia a intenção de lucro. O recente filme de Abbas Kiarostami “Cópia Fiel” (2010) também levanta essa questão, o personagem em uma palestra na primeira cena declara que as cópias são importantes porque reconduzem ao original e, dessa forma, atestam o seu valor.  Cildo Meireles quando soube que haviam copiado seu trabalho foi claro em dizer:

“Agora sim me sinto um artista completo!”.

* Lucila Vilela é artista, dançarina, professora, crítica e curadora de arte. Texto publicado originalmente na revista Interartive