guarda-sóis negros
UM GESTO PÓS-DUCHAMPIANO
por Felipe Lins *
Os guarda-sóis negros de Cláudio Trindade têm uma história. Eles nascem no museu, nesse espaço criado para expor obras de arte. Com Duchamp, esse espaço foi evidenciado como o legitimador da arte, já que o mero gesto de ali expor um objeto pronto faz deste uma obra, o que levou à constatação de que a arte é, antes de tudo, instituição, construção cultural.
Embora suscitem diversas reflexões, os guarda-sóis negros serão aqui abordados a partir de um só ponto: Os guarda-sóis negros têm uma história e dialogam com uma história: a história da arte. Eles repetem o gesto de Duchamp. Em primeiro lugar, são ready-mades. Ademais, redundam o caráter nominalista da arte, pelo qual a arte é tão-somente aquilo que o artista nomeia como arte. Chamar de guarda-sóis negros objetos que comumente seriam chamados de guarda-chuvas, é inventar o objeto, é fazer dele um nome próprio sem referente, desestabilizando a relação diáfana entre as palavras e as coisas. Percebe-se também nessa operação uma citação de Magritte, aquele pintor que se tornou famoso por inscrever em uma tela, na qual se representa um cachimbo, a frase: “isto não é um cachimbo”.
Por tudo isso, os guarda-sóis negros assumem, portanto, uma tradição, uma herança. No entanto, o que poderia ser mera submissão a um paradigma, é a própria denúncia do paradigma, da sua naturalização. A arte contemporânea, ao repetir incansavelmente o gesto de Duchamp – já que as instalações são, quer se queira, quer não, tributárias dos ready-mades duchampianos –, acaba por torná-lo natural, apagando as referências institucionais inerentes à arte. Nesse caso, os guarda-sóis negros refletem a esterilidade da arte atual. Ora, mas até aí não se vê nenhuma denúncia, apenas reiteração do mesmo. Contudo, o fato de os guarda-sóis terem uma história exige que se analise sua origem retrospectivamente.
Os guarda-sóis nascem no museu. Mas dali saem. E é justamente essa saída do museu que denuncia a naturalização contemporânea da arte. O que, paradoxalmente, se dá no momento em que os guarda-sóis se instalam na natureza. Ou seja, eles são retirados do seu espaço convencional, funcional, natural (atualmente, nada mais convencional e natural do que ready-mades em museus), e são colocados em paisagens naturais. Importa enfatizar que é o tempo 2 (guarda-sóis na natureza) que ressignifica o tempo 1 (guarda-sóis no museu), fazendo do tempo 1 a própria natureza, o lugar natural da arte que deve, agora, ser deslocado, a fim de que se possa, a partir de Duchamp, transgredir o paradigma Duchamp. Com e contra.
Diante disso, uma reflexão vem à tona: a passagem do museu à paisagem dilui a hierarquia entre natureza e cultura, hierarquia que Duchamp apenas inverteu ao fazer da natureza mero produto derivado da cultura. Através dos guarda-sóis negros de Cláudio Trindade, não há mais hierarquia. Não se decide mais em favor nem da cultura, nem da natureza. É claro que a natureza, por ser um conceito, é tão cultural quanto a cultura. Todavia, esta afirmação descarta a possibilidade de a cultura ser tão natural quanto a natureza. Enfim, talvez fosse necessário que o conceito de natureza pudesse retornar de forma diferente, figurando como a possibilidade de abalar o conceito homogeneizador de cultura que impera na cena contemporânea, conceito este ao qual todos os entes são subsumidos, o que impede o porvir.
Os guarda-sóis negros talvez encenem uma abertura para o devir. Seu valor não está em lugar algum. Está, ao contrário, na passagem, no trânsito. Ao serem retirados do museu e transpostos à paisagem natural, fazem do museu seu lugar de origem; isto é, transformam a instituição artística (e de modo geral a cultura) em natureza; ao serem inseridos na paisagem natural, transformam-na em contexto institucional, artístico, cultural: ela se torna o museu que acolhe o ready-made.
* Felipe Lins (Top) é Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina, crítico de arte, psicanalista e poeta.